Vol. 14 nº 1 - Março de 2006
Artigo de Revisão Páginas 71 a 75
Proteína C-Reativa como Marcador Prognóstico Pós-Intervenção Coronária Percutânea
Autores: Maria Sanali Paiva1, Itamar Ribeiro de Oliveira1, Ludmilla Almeida da Rocha Ribeiro de Oliveira1, Fredson Roberto S. Mota1, Hugo Diógenes de O. Paiva2
http://www.rbci.org.br/detalhe_artigo.asp?id=97
Descritores: Proteína C-reativa, metabolismo. Inflamação, metabolismo. Valor preditivo dos testes. Angioplastia transluminal percutânea coronária.
RESUMO:
A correlação entre a ciência básica avançada e os achados da pesquisa clínica tem mudado, radicalmente, nossos conceitos sobre a patogênese e o tratamento das complicações clínicas da aterogênese. Atualmente, considera-se a inflamação como fator essencial no desenvolvimento das lesões ateroscleróticas, mudando assim nossos conhecimentos sobre a terapia da aterosclerose. No âmbito da intervenção coronária percutânea, o papel da inflamação no desenvolvimento da reestenose tem sido investigado em vários estudos. Existe uma interação, de fato, entre a ativação do processo inflamatório e a resposta da parede vascular à injúria, levando a uma hiperplasia intimal. Neste artigo, revemos a formação da placa aterosclerótica, o papel da inflamação na reestenose e a participação da proteína C-reativa (PCR) neste processo.
Atualmente, entende-se a aterogênese como uma complexa interação entre fatores de risco, células da parede arterial e componentes do sangue circulante (Figura 1). Quando o endotélio entra em contato com certos produtos bacterianos ou fatores de risco diversos, tais como dislipidemia, hormônios vasoconstrictores, produtos da glicoxidação, hiperglicemia ou citocinas pró-inflamatórias derivadas do excesso de tecido adiposo, há um aumento na expressão de moléculas de adesão, que promovem o encaixe dos leucócitos circulantes na parede arterial1. Essas células são atraídas para os locais onde existe a lesão na parede do vaso, perpetuando a região da inflamação. Para que o processo de entrada (transmigração) de leucócito nos vasos ocorra fazem-se necessárias as seguintes etapas: 1) adesão primária, sendo esta uma etapa transitória e reversível em segundos; 2) adesão secundária, que necessita da ativação das integrinas dos leucócitos; 3) parada do leucócito e 4) sua diapedese, que caracteriza a passagem do leucócito através do endotélio intacto2.
Figura 1 - Eventos iniciais para o desenvolvimento da placa aterosclerótica. A LDL sofre oxidação no espaço subendotelial, desde a LDL minimamente modificada (mmLDL) até a LDL oxidada (oxLDL). Os monócitos aderem-se à célula endotelial induzida a expressar moléculas de adesão por meio da ação da mmLDL e citocinas inflamatórias. Os monócitos no espaço subendotelial diferenciam-se para macrófagos. Estes, com a participação da oxLDL, transformamse em células espumosas. A oxLDL é assim armazenada ou transportada para fora da célula (Adaptado de Glass e Witzum4).
Esse processo de transmigração depende de moléculas de adesão nas células endoteliais e seus receptores na superfície dos leucócitos. Quando a transmigração ocorre no endotélio da parede do vaso, a mais importante molécula de adesão é a molécula de adesão celular vascular-1 (VCAM-1) e o seu receptor, a integrina ?4?1, que participa nas três primeiras etapas da transmigração. Em seguida, a 3ª e 4ª etapas (parada e diapedese dos leucócitos) dependem da molécula de adesão intercelular- 1 (ICAM-1) e de seu receptor, ?L?15. A adesão primária dos leucócitos também se faz com a participação de outra molécula de adesão endotelial, a P-selectina, juntamente com o seu receptor específico no leucócito, a glicoproteína ligante-1 da P-selectina (PSGL-1)3.
Os monócitos, através do fator estimulador de colônia de macrófagos-1 (MCSF-1), são ativados e transformam- se em macrófagos. Estes, ao ingerirem os lipídeos na placa de ateroma, passam a constituir as células espumosas. As células endoteliais e de músculo liso também podem produzir MCSF. As células T produzem mediadores inflamatórios, tais como citocinas, interferon ? e fator de necrose tumoral ? (TNF ?), que por sua vez estimulam os macrófagos e células do músculo liso. Continuamente, esse processo leva à fibrose da íntima e à formação de uma densa matriz extracelular típica de lesões ateroscleróticas1. Entre os muitos fatores de risco, a lipoproteína de baixa densidade oxidada (LDL-oxidada) participa diretamente nessa progressão de monócito até macrófago/células espumosas. Quando em excesso, a LDL pode acumular-se na íntima e sofrer oxidação, glicação (no diabetes), agregação e associação com proteoglicanos. Essas partículas de LDL, ao serem capturadas na artéria, são submetidas à oxidação e, então, à absorção pelos macrófagos. Formam-se, assim, peróxidos lipídicos, levando ao acúmulo de ésteres de colesterol, o que resulta na formação de células espumosas. A retirada e o seqüestro da LDL pelos macrófagos são características importantes no papel protetor dos macrófagos na resposta inflamatória. Entretanto, essa LDL oxidada possui ação quimiotática para outros monócitos, estimulando a sua replicação por meio da entrada de monócitos adicionais na lesão5,6. A maior conseqüência dessa reação inflamatória é a migração de células do músculo liso (CML) da camada média para a íntima do vaso. Essas células proliferam e elaboram uma rica matriz extracelular. Em associação com células endoteliais e monócitos, secretam matriz metaloproteinases (MMPs), em resposta a estímulos oxidativos, hemodinâmicos, inflamatórios e auto-imunes. As MMPs são responsáveis pela ativação, proliferação, migração e morte celular, assim como neoformação vascular, remodelamento geométrico, cicatrização ou destruição de matriz extracelular das artérias e miocárdio. Em associação com a proliferação, a morte celular (apoptose) ocorre igualmente na lesão aterosclerótica estabelecida. A morte dos macrófagos envolvidos na lesão leva ao acúmulo de lipídeos na íntima, formando o clássico núcleo necrótico rico em lipídeos da placa aterosclerótica (Figura 2).
Figura 2 - Progressão da lesão. Interação entre macrófagos/células espumosas, linfócitos Th1 e Th2 estabelece um processo inflamatório crônico. As citocinas secretadas pelos linfócitos e macrófagos exercem ação, tanto pró, como antiaterogênica. As CML migram da porção média da parede arterial, proliferam e secretam matriz extracelular que forma a placa fibrótica (Adaptado de Glass e Witzum4).
RESPOSTA INFLAMATÓRIA APÓS IMPLANTE DE STENT
Estudos em animais e em fragmentos de aterectomia evidenciam que a dilatação por balão provoca na parede do vaso uma desendotelização e o acúmulo de plaquetas e fibrina no local da injúria. Formam-se, então, complexos de plaquetas/plaquetas, plaquetas/leucócitos e leucócitos/endotélio, ligações estas mediadas por moléculas de adesão, tais como a P-selectina, molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1), LFA-1 (?L ?2, CD11a/ CD18), Mac-1 (?M ?2, CD11b/CD18), p150,95 (?M ?2, CD11c/CD18)7 e glicoproteína (GP) Ib que participam diretamente dessas interações, promovendo a adesão das plaquetas com monócitos e neutrófilos e o acúmulo de leucócitos no endotélio, iniciando, assim, o processo de migração após a injúria endotelial8.
A ativação das citocinas incrementa a migração de leucócitos através da camada de plaquetas e de fibrina por meio do tecido. Os fatores de crescimento são liberados de plaquetas, leucócitos e células do músculo liso. Os fibroblastos proliferam, sendo transformados em miofibroblastos, cerca de 3 a 14 dias após a intervenção. A fase seguinte é a de granulação ou proliferação celular, que pode culminar com o desenvolvimento de reestenose (Figura 3). Fatores de crescimento são liberados das plaquetas, leucócitos e CML, que estimulam a migração de CML da média para a neoíntima. A neo-íntima resultante desse processo é composta de CML, matriz extracelular e macrófagos recrutados ao longo de várias semanas. A matriz extracelular é composta de vários subtipos de colágeno e proteoglicanos, que constituem o maior componente da placa reestenótica7. Após o implante do stent, em uma fase inicial, um trombo mural é formado, seguido pela invasão de células do músculo liso, linfócitos T e macrófagos. Após quatro semanas, a estrutura do stent fica recoberta por matriz extracelular, que tende a incrementar-se mais tardiamente; poucas células do músculo liso com linfócitos adjacentes são observadas. A penetração do stent no núcleo lipídico induz a inflamação arterial, associada ao aumento do crescimento neo-intimal.
Figura 3 - Ilustração esquemática da reestenose intra-stent. A: Vaso aterosclerótico antes da intervenção. B: Resultado imediato do implante do stent com desnudação endotelial e depósito de plaquetas e fibrinogênio. C e D: Recrutamento de leucócitos, infiltração, proliferação de células do músculo liso (CML) e recrutamento de monócitos dias após a injúria. E: Espessamento neo-intimal semanas após a injúria, com contínua proliferação de CML e recrutamento de monócitos. F: Alterações tardias (semanas a meses) de uma placa predominantemente celular, para uma menos celular e mais rica em matriz extracelular (Adaptado de Costa e Simon7).
Existem diferenças entre angioplastia por balão e stent quanto à fisiopatologia da hiperplasia intimal, pois, após implante de stent, esta reação é mais proeminente e o acúmulo de macrófago é mais prolongado. Além disso, o processo inflamatório pode não ficar restrito ao local da injúria, estendendo-se para tecidos subjacentes8,9.
PCR COMO MARCADOR PROGNÓSTICO PÓSINTERVENÇÃO CORONÁRIA PERCUTÂNEA
Considera-se que a inflamação tem papel importante no desenvolvimento da reestenose após intervenção coronária percutânea. Em particular, a proteína C-reativa (PCR) ultra-sensível foi validada como reproduzível e de preço acessível. Evidências acumuladas sugerem que a PCR representa um dos mais fortes preditores de doença arterial coronária. De fato, surge como um preditor mais forte que o LDL colesterol, participando diretamente na promoção do processo aterosclerótico e da inflamação das células endoteliais. Tem um vasto espectro de atuação, desde reduzir a sintetase endotelial do óxido nítrico, até estimular a liberação da IL-6, das moléculas de adesão e da proteína quimoatacante de monócito-1 (MCP-1).
Mais recentemente, foi demonstrado que a PCR facilita a apoptose das células endoteliais e inibe a angiogênese, uma vez que inibe as células progenitoras, fato que causa a inibição da angiogênese compensatória nas isquemias crônicas10.
Vários estudos prospectivos têm demonstrado que a PCR é um forte preditor independente de risco para infarto do miocárdio, AVC, doença arterial periférica e óbito por doença vascular11,12, de igual forma para pacientes com quadros de angina instável ou estável13-18. Muitos investigadores preconizam que níveis elevados de PCR pré e pós-intervenção coronária percutânea estão associados a um pior prognóstico e à ocorrência de eventos cardíacos futuros14. Contudo, ainda não há consenso a respeito19,20.
Os níveis deste marcador podem ser diretamente proporcionais ao grau de coronariopatia – isto é, quanto maior a quantidade de vasos envolvidos, maior a elevação21 – ou, ainda, ao grau de complexidade das lesões16, embora não haja um consenso a esse respeito. Sua elevação está relacionada também a fatores como índice de massa corporal, tabagismo22, idade, trigliceridemia, fração de ejeção reduzida, extensão da doença e IAM prévio. Pode também elevar-se nos casos de angina estável23. Biasucci et al.15 demonstraram que pacientes com PCR acima de 0,3mg/dL tinham 8,6 vezes mais chances de recorrência da isquemia do que pacientes sem tal nível de marcador. Além disso, a elevação da PCR nas isquemias agudas (IAM) indica pior prognóstico, independente da troponina13. Após acompanhamento de 1152 pacientes com angina estável submetidos a angioplastia (tratamento completo e agressivo), 25% dos quais diabéticos, observaram uma forte relação entre os níveis iniciais de PCR (apenas dosagem basal, antes da ATC) e o risco de IAM e óbito após 1 ano, além de reestenose após 6 meses. Depois de 6 meses, 6,5% dos pacientes com PCR elevada foram a óbito ou apresentaram IAM não-fatal, contra apenas 3% daqueles com níveis normais. Apenas a idade e o tabagismo estiveram positivamente relacionados aos resultados. Em contrapartida, o diabetes não teve relação na referida análise, não havendo, de fato, consenso quanto a esta situação24.
A obesidade aumenta o nível de PCR, sendo a adiposidade um fator estimulante para a sua produção hepática, podendo estar inicialmente aumentada nos diabéticos24,25. Dados recentes sugerem que pacientes destinados a ter diabetes mellitus do tipo 2 podem ter níveis previamente elevados de PCR e IL-6, precedendo o início da doença24.
A PCR não é somente um marcador de inflamação sistêmica, mas participa diretamente do mecanismo patogênico da aterosclerose26. Em estudo comparativo dos níveis de PCR entre portadores de angina estável e instável, sugere-se que a estabilidade clínica nem sempre indica estabilidade de placa. Elevação da PCR em pacientes estáveis pode significar inflamação permanente na placa ateromatosa. O risco de eventos coronários naqueles com PCR elevada está diretamente associado ao número aumentado de placas vulneráveis, susceptíveis à ruptura26.
À inflamação atribui-se papel fundamental no desenvolvimento da reestenose após angioplastia, estando a maioria dos estudos tentando relacionar a reestenose com níveis de marcadores inflamatórios. Os resultados são discordantes. Buffon et al.27 e Jeong et al.28 encontraram relação entre PCR e reestenose em pacientes com angina estável ou instável, tratados com angioplastia por balão. Na mesma linha de pensamento, Walter et al.29 encontraram relação entre níveis basais de PCR e reestenose após implante de stent. Igualmente, em outro grupo menor de pacientes com angina instável submetidos a implante de stent, níveis de PCR foram preditores de reestenose30. Em contrapartida, estudo envolvendo 216 pacientes com angina estável, submetidos a angioplastia com implante de stent, mostrou níveis basais de PCR já elevados, com curva ascendente após o procedimento e elevação máxima após 24h, retornando aos níveis basais depois de 4 semanas19. Não houve relação entre os níveis de PCR pré-procedimento e reestenose após 6 meses19,20. Da mesma forma, outros autores não encontraram qualquer relação entre PCR e reestenose após angioplastia por balão. Resultados similares foram vistos por Zhou et al.31.
Em estudo recente, Dibra et al.32 analisaram os níveis de PCR antes e após implante de stent em 1800 pacientes consecutivos, tendo-se realizado angiografia de controle, após 6 meses, em 1380 pacientes. Nenhuma relação foi encontrada entre os valores basais de PCR e reestenose angiográfica. Entretanto, a diferença entre os níveis basais e o pico de PCR após a intervenção esteve significativamente relacionada à incidência de reestenose angiográfica. Quanto mais intensa a resposta inflamatória, maior o risco de reestenose. A PCR foi preditora de reestenose independente das características clínicas e angiográficas, tais como complexidade das lesões, angina instável, diabetes e lesões longas32.
Por fim, nosso entendimento da aterosclerose torna evidente o papel central da inflamação em todas as fases do processo aterosclerótico. Estudos clínicos salientam a correlação entre marcadores de inflamação e a propensão ao desenvolvimento de eventos isquêmicos, assim como a sua participação na determinação do prognóstico e estratificação de risco em síndromes coronárias agudas e crônicas. Muitas são as evidências que sugerem a correlação entre o implante de stent coronário e a resposta inflamatória, tanto local como sistêmica, assim como uma possível associação entre os níveis desses marcadores e o desenvolvimento de reestenose. Com essa visão, o estudo da aterosclerose tem iniciado uma importante etapa de relevância clínica, despontando sua aplicação na monitorização da terapia, além de novas metas terapêuticas, sendo imprescindível o total esclarecimento de como e quais marcadores estão de fato envolvidos na aterogênese.
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